sexta-feira, 28 de novembro de 2008

MAGIA QUE NAO SE VE



Sempre que percorro as ruas esburacadas e poeirentas do nosso bairro, a caminho do centro ou da escola, mil imagens de alegria entram no meu coração. não é possível descrever o que somos capazes de sentir quando estas crianças, que brincam na rua, sorriem. A alegria delas é genuína, transparente e não parece transportar nunca sinais de pobreza interior. A miséria exterior, aquela que se avalia, critica, que facilmente transborda o limite do visível e que serviu de noticia no "Publico" desta semana, argumentada, estruturada e definida, essa vê-se por todo o lado, a toda a hora e não é falsa nem finge existir. Transpira-se em Dili, em Baucau, em Maubara, em Dare, em Bazartete e nos amplos "entres". Mistura-se com o suor que o sol insiste arrancar do nosso corpo e constitui, sim, parte da realidade timorense. Não desminto.
Sim, é verdade que é impossível conduzir o jipe numa linha recta, ainda que a estrada seja também ela recta, devido aos buracos, marcas e cicatrizes deixadas pelas lagartas dos tanques.
Sim, é verdade que a cidade se confunde com o chão, se as casas que se levantam hoje são feitas de pedaços de chapa que enferruja e madeira que apodrece.
Sim, é verdade que o passado é recente e que muito trabalho esta ainda por fazer, senão quase todo, que os muitos edifícios brancos das cidades, são apenas restos de contentores de vidas queimadas ou vazias, como se a guerra não quisesse abandonar nunca este povo.

Mas encontra-se magia em cada pequeno detalhe, em cada flor no caminho (que agora é símbolo de vida), em cada uniforme de escola ou colégio lavado com o esforço de mães empenhadas e atentas, em cada vendedor de rua carregado de sonhos e esperança, em cada sorriso, gesto ou palavra de qualquer timorense que passa por nos, em cada senhora, que caminha com uma dignidade rara de se encontrar, em cada velho de cabelo grisalho que, apenas com o olhar, promete lições sabias e enriquecedoras, em cada pedaço desta terra! Encontra-se esperança na voz das crianças, na ambição insegura mas corajosa dos jovens.
Confesso que comecei sendo mera figurante deste cenário, e acabo por me ir projectando nele. Descubro todos os dias, alguma coisa em mim, por viver no meio de toda esta simplicidade que se diz provisória, mas que insiste em ficar para sempre. É impossível não testarmos a nossa resistência física e psicológica todos os dias.
No meio desta "...versão apenas ajardinada da favela...", descrita pelo jornalista Pedro Rosa Mendes, sinto-me mais perto de mim. Que importa se quem olha de fora, não vê. Esta fora, e não vê!
Vou descobrindo quem sou, no meio desta gente tão querida, que sofreu tanto e vive de forma tão delicada e agradecida. E aprendo a viver como eles, sem criticar ou julgar, mas ajudando com o que tenho e o que sou. E dando tempo acima de tudo. Como se espera que a esperança se reconstrua em 9 anos? Como se apagam todas as tentativas de reconstrução que foram existindo entretanto, para logo se seguida serem destruídas? Como se espera que o povo actue, se não tem dois anos seguidos de paz, desde a época da invasão ate agora? E como é possível descrever a situação de um povo como ESTE povo, se não se fala dele, se se da azo a que comentários absurdos, sem consequência ou sequer testemunho vivido, sejam feitos contra ele?

Estou indignada.
Deixo-vos uma pequena parte do livro-reportagem que estou a ler, da jornalista brasileira Rosely Forganes, essa sim, verdadeira correspondente de guerra, que esteve em Timor em 1999, durante o massacre que seguiu o plebiscito.

" O primeiro barco marca uma nova etapa no repatriamento dos refugiados, 1500 pessoas vão chegar hoje, vindas do Kupang, no Timor Oeste, onde fica a maior parte dos campos controlados pelas milícias. O cais esta vazio. só os militares e os jornalistas tem acesso ao local. O dia ainda esta amanhecendo e já avistamos o barco, um navio enorme, com vários andares. Centenas de refugiados estão no convés, cantando a musica que foi uma espécie de hino da resistência nestes anos todos: "Oh eh eh eh, Oh eh eh ah..." marca o refrão. Eles dão vivas ao Timor Lorosae, à resistência, à reconciliacao, à paz, à independência, ao retorno a casa. E voltam a cantar a mesma musica.
Nesse momento, um soldado australiano sai do hangar e avança sozinho ate a ponta do cais, deserto a essa altura. De frente para o barco, que esta quase chegando. Na luz cor-de-rosa da manha, uma dessas auroras que só o céu de Timor é capaz de colorir, ele empunha a gaita de fole e começa a tocar a Valsa do Adeus. É algo totalmente irreal. Os refugiados no barco param de cantar, militares, jornalistas, todos parecem pregados no chão e imóveis enquanto a melodia ecoa na manha transparente. É como se o tempo tivesse parado. Quando a musica acaba, todos levam alguns segundos para sair da imobilidade. O cais e o barco irrompem em aplausos.
Quem diria, mesmo uma guerra tem momentos de absoluta magia!!"

3 comentários:

Stuck @ Zero disse...

Uau Joana. Uau.
Ainda bem que estás aí, e assim.

Eu preciso de falar contigo! Até amanhã! (recebeste a minha mensagem?)

beijo

Stuck @ Zero disse...

Ah e sobre o Rosa Mendes, é duro, arrasador, avassalador!, implacável, mas é tudo verdade...

Pode ser só uma face - a negativa - mas serve pelo menos para, como um espelho, nos obrigar a pensar o porquê disto tudo. O porquê do nosso lugar aí.

Eu, depois de alguns confrontos (que ainda duram), percebi que as minhas coisas são causas e pronto!

E acredito numa mudança que vem vindo, à velocidade que todo o contexto cultural permite.

beijo

Joaninha disse...

Ola Sara!
A noticia no Publico é a mais pura verdade sim!...e acho que so confirmo isso no meu texto. So tenho pena que um dos topicos nao tivesse o assunto POVO. TEnho a certeza que se tivesse, nao teria dado azo a comentarios posteriores absolutamente irracionais de pessoas que concerteza nunca visitaram este lado do mundo. Se ha coisa que me irrita é falsa pretensao e demagogia. O tom factual é cruel, mas positivo. A dose de pessimismo é excessiva, na minha opiniao e pouco construtiva.
Um beijinho e obrigada pela presença!